
Recentemente, o cantor Toni Garrido, vocalista da banda Cidade Negra, reacendeu um debate ao modificar ao vivo a letra da canção Girassol, lançada originalmente em 2002. No trecho alterado, Garrido trocou a frase “já que pra ser homem tem que ter a grandeza de um menino” por “de uma menina”, afirmando posteriormente que considerava a versão original “hétero machista top” e que sua intenção era homenagear as mulheres.
A alteração, no entanto, gerou reação imediata de parte do público e, mais ainda, de um dos compositores da música, Da Ghama, que classificou a mudança como desrespeitosa. Em sua defesa, ele explicou que a letra original utiliza a figura do “menino” como símbolo de pureza, inocência e grandeza emocional — e não como uma imposição de masculinidade. “A letra é poesia, não um manual de conduta”, afirmou o autor.
Este episódio aparentemente simples lança luz sobre temas muito mais profundos e complexos: os limites da reinterpretação artística, os riscos do anacronismo e revisionismo cultural, e as tensões crescentes em torno da identidade masculina no século XXI.
Em um tempo de crescente sensibilidade social — o que muitos chamam de “cultura woke” — é cada vez mais comum reinterpretar obras do passado à luz das pautas atuais. Em alguns casos essa prática possa ter méritos, como resgatar vozes silenciadas e provocar reflexão sobre desigualdades históricas, ela também carrega riscos.
O principal deles é o anacronismo: julgar o passado com os valores do presente, desconsiderando o contexto em que a obra foi criada. Letras, filmes, livros ou expressões culturais de outras épocas nem sempre resistem a esse tipo de escrutínio. Ainda assim, são parte da história e do imaginário coletivo. Alterá-los, sem diálogo ou contextualização, pode significar não apenas censura, mas apagamento de referências que ajudaram a moldar visões de mundo — inclusive visões críticas.
No caso de Girassol, a troca do termo “menino” por “menina” parece querer corrigir uma suposta injustiça, mas pode ser lida também como um ato de reescrita simbólica, que ignora a intenção original da composição. Há espaço para novas versões? Sim. Mas elas precisam conviver com a obra original — não substituí-la.
Imagine, por exemplo, se alguém decidisse mudar a letra da música Pai, de Fábio Jr., para “Mãe” — apenas por considerar que exaltar a figura paterna seria “masculinista” ou excludente. O impacto emocional da canção, construída sobre a experiência de um filho em relação ao pai, se perderia completamente. Não porque uma mãe não seja igualmente importante, mas porque o contexto da música é profundamente pessoal e simbólico. Alterá-lo quebraria a essência da obra. Com Girassol, o princípio é o mesmo.
Há uma sensação crescente, sobretudo entre os homens mais jovens, de que ser homem no século XXI passou a ser quase uma falha moral — algo que precisa ser corrigido, desconstruído ou até silenciado. O discurso dominante em muitos ambientes culturais, midiáticos e até institucionais projeta sobre os homens uma responsabilidade coletiva por séculos de desigualdade, como se a simples identidade masculina fosse, em si, um fator opressor.
Não se trata mais apenas de promover a igualdade entre homens e mulheres. O que se vê em muitos casos é um deslocamento: homens sendo afastados de espaços sociais e jurídicos sob o pretexto de reparação histórica. Leis desequilibradas, julgamentos antecipados em casos de conflito familiar, dificuldade de acesso à guarda dos filhos, e até a criminalização de atitudes (virtudes) masculinas antes tidas como normais — tudo isso tem gerado um sentimento real de exclusão.
Mais do que isso, há um esvaziamento simbólico da masculinidade. Exaltar virtudes tradicionalmente masculinas como coragem, proteção, firmeza ou liderança passou a ser visto como suspeito, ultrapassado ou até tóxico. O homem, ao mesmo tempo, é cobrado para ser sensível, emocionalmente aberto, presente — mas se ousa manifestar sua visão, muitas vezes é acusado de “manter o patriarcado”. A régua é dupla. E o jogo, desleal.
Esse novo cenário não é apenas injusto — é perigoso. Ele empurra milhares de homens para o silêncio, para o ressentimento ou para radicalizações. Quando a sociedade fecha os ouvidos para a dor de um grupo, esse grupo procura saídas pelas margens. Negar espaço ao masculino saudável abre caminho para que o masculino doente se manifeste.
A masculinidade não precisa ser destruída, mas compreendida em sua complexidade. Homens não são o problema — são parte essencial da solução. O que precisa acabar não é o homem, mas os comportamentos abusivos — que, aliás, também existem entre mulheres. A generalização tem feito mais mal do que bem.
Em tempos de tanta “inclusão”, é preciso perguntar: por que os homens parecem ser os únicos que não podem se orgulhar de quem são?
A arte sempre foi, por excelência, um espaço de liberdade. Um território onde o pensamento pode correr solto, onde o incômodo é bem-vindo e onde a beleza muitas vezes nasce do confronto com o que não é óbvio, nem confortável. No entanto, nos últimos anos, a arte tem sido cada vez mais pressionada a se comportar, a obedecer, a se adequar.
Em nome de causas, algumas legítimas, artistas vêm sendo incentivados — ou coagidos — a revisar obras, alterar letras, esconder passagens incômodas ou adaptar narrativas ao gosto do “politicamente correto”. O resultado é o enfraquecimento do espírito artístico. Quando a arte deixa de provocar e passa a agradar por obrigação, ela deixa de cumprir seu papel essencial.
Não é mais a inspiração que conduz o artista, mas a patrulha moral. E o medo de ser cancelado passou a ser, em muitos casos, mais determinante do que a própria verdade criativa.
É preciso perguntar: que tipo de arte estamos cultivando, se só pode existir dentro dos limites impostos por ideologias do presente? Será que a liberdade artística — essa que sempre desafiou poderes, quebrou paradigmas e gerou transformações reais — está sendo substituída por uma arte de salão, pasteurizada, domesticada?
O episódio envolvendo Girassol é apenas um sintoma. A música não foi questionada por seu valor estético ou sua falta de qualidade — mas porque, supostamente, não atendia aos critérios morais do momento. Isso não é crítica. É censura disfarçada de virtude.
Quando uma sociedade começa a editar suas canções, reescrever seus livros e moldar seus filmes para agradar às sensibilidades ideológicas da vez, o que se perde não é só a arte: é a memória, a honestidade e a coragem de pensar fora do consenso.
Arte não precisa pedir licença. Precisa dizer o que precisa ser dito — mesmo que doa, mesmo que provoque. É assim que ela muda o mundo. O resto é propaganda e lixo ideológico.
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